Esculturas da memória: Joelsonbiu reinventa o sertão em cerâmica
O sertão como invenção, memória e liberdade ocupa o centro da nova exposição da Número Galeria, em Boa Viagem, zona sul do Recife. Com abertura marcada para esta quinta-feira, (15), às 19h, Infinitamente Sertão apresenta trabalhos inéditos do artista pernambucano Joelsonbiu, sob curadoria de Joana D’Arc Lima. A mostra reúne esculturas cerâmicas que transformam o espaço expositivo em uma espécie de templo poético onde se cruzam o mítico, o bruto, o sensível e o cotidiano.
A exposição parte de um sertão imaginado, mas profundamente enraizado nas vivências e no imaginário do artista, natural de Vitória de Santo Antão. Inspirado por narrativas orais, memórias de infância, literatura, cinema e teatro, Joelsonbiu cria colunas cerâmicas que evocam elementos da cultura popular, do realismo fantástico e de uma visualidade radicalmente autoral. O barro, o fogo e a palavra são matéria e símbolo nesse território artístico que propõe outras formas de viver e de fabular o mundo.
Com dez grandes peças de cerâmica montadas a partir da sobreposição de peças únicas, Joelsonbiu presta uma homenagem à obra Coluna Infinita, do artista romeno Constantin Brancusi, ressignificando o gesto construtivo a partir de sua própria experiência e pesquisa. A cerâmica, aqui, não é apenas técnica: é linguagem, gesto e resistência. Entre formas orgânicas e simbólicas, o artista constrói um “sertão infinito”, onde cabem tanto Shakespeare quanto Ariano Suassuna, Raduan Nassar ou imagens eróticas do século 19, tudo costurado por uma estética que desafia fronteiras entre o sagrado e o mundano, o público e o íntimo.
Para Joelsonbiu, o sertão de sua obra é tanto geográfico quanto inventado: “Eu sou da zona da mata, de Vitória de Santo Antão, mas o que me contavam sobre o sertão era outra coisa. Eu inventei uma vegetação, um ambiente, a partir dessas histórias que ouvi quando criança. Era uma construção imaginária, uma fabulação minha do que seria o sertão”, revela.
A curadora destaca também como a exposição é atravessada por múltiplas referências simbólicas e materiais, da força do barro à composição cromática das peças, passando pelo diálogo com a história da arte, com o cinema e com a própria experiência marginal da arte popular nordestina. “Infinitamente Sertão nos desloca para a complexidade de um território imaginado, quimérico e potencializado pela força vital e vontade de vida desse artista radical e intempestivo”, escreve Joana D’Arc no texto curatorial.
Segundo Joana, a escolha de Joelsonbiu partiu de uma longa trajetória de acompanhamento de sua obra: “Eu venho acompanhando a pesquisa e a poética de Joelsonbiu há muitos anos. Sua inquietude estética e seu envolvimento com a cerâmica como linguagem expressiva sempre me interessaram. O projeto Infinitamente Sertão nasceu da pesquisa dele sobre forma, escultura e ocupação do espaço, que culminou na criação das colunas-totens, base da exposição, e no filme-documentário O Duque de Capuleto.”
Joana acrescenta ainda que a proposta atual é mais ousada: “A Número Galeria apostou na ideia de que o sertão é fluido, movediço, complexo e fantástico. Aqui, os trabalhos selecionados abordam temas como violência, desavenças familiares, ancestralidade e fabulação. Ao mesmo tempo, o visitante é levado a um universo poético, por meio de objetos cerâmicos que evocam utilitários coloniais e arquiteturas simbólicas.”
O processo de curadoria, segundo ela, foi um diálogo intenso: “Queríamos ocupar a galeria com as colunas como se fossem pilares de sustentação, criando um ambiente ritualístico e contemplativo. A questão cromática, os caminhos entre as peças e a justaposição com outras séries do artista criaram um espaço simbólico e sensorial, quase labiríntico, que estimula errâncias, pausas e encontros.”
Além das esculturas, a exposição apresenta também objetos como Matriz da Luz, trabalho que incorpora medalhões e cornucópias inspirados em imagens fotográficas de nus femininos e cenas eróticas do final do século XIX e início do XX. Esses elementos, de acordo com Joelsonbiu, funcionam como portais entre o caos e a ordem, o estabelecido e o marginal, o visível e o oculto.
Para ele, a cerâmica também é política: “O artista que se preza se coloca politicamente, mesmo sem levantar bandeira. A cerâmica conta a história do mundo. É feita de restos, de coisas que foram destruídas e depois reutilizadas. Os grandes museus estão cheios de peças coladas, reconstruídas, com marcas de guerras e erosões. Cerâmica é humanidade em forma de arte”, diz, acrescentando que arte é liberdade. “É como se você abrisse as portas e corresse desesperadamente e infinitamente em busca do que você nem sabe exatamente o que vai encontrar.” Em Infinitamente Sertão, essa busca se torna convite: uma proposta de subversão das formas, dos sentidos e da própria experiência de estar no mundo.
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