Temporada França-Brasil 2025: Oficina Francisco Brennand promove intercâmbio inédito com a artista guadalupense Lénablou
Espaço também de produção de pensamento e pesquisa, a Oficina Francisco Brennand se insere na programação oficial da Temporada França-Brasil 2025, que celebra 200 anos de relações diplomáticas e culturais entre os dois países, recebendo a coreógrafa, pesquisadora e referência em dança afro-caribenha Lénablou para uma residência de pesquisa e intercâmbio cultural. Executado ao longo deste setembro e outubro, o projeto “Entre os mares eu dancei” realiza um intercâmbio inédito entre Pernambuco e Guadalupe, região ultramarina francesa no Caribe, conectando as expressões corporais locais às práticas e pensamentos que desafiam fronteiras coloniais, estabelecendo pontes e novas rotas entre diferentes diásporas africanas.
Desenvolvido pela Oficina Francisco Brennand, do lado brasileiro, em parceria com o Artchipel – Scène Nationale de la Guadeloupe e a Cie Trilogie Lénablou, do lado francês, “Entre os mares eu dancei” propõe a criação de uma cartografia sensível entre as duas regiões latino-americanas, consolidando elos culturais, antropológicos, históricos e estéticos entre dois territórios atravessados por heranças africanas e vivências pós-coloniais. Ambos compartilham um passado comum, colonial, açucareiro e violento, mas que vêm se forjando, desde sempre, a partir da arte – jamais separada da vida.
Em resposta a esses processos, danças, músicas e expressões artísticas emergiram como formas de inteligência, resistência, invenção e preservação de identidades, fazendo da cultura uma linguagem de sobrevivência e luta diaspórica. Para isso, a agenda de Lénablou no Estado contempla residência de pesquisa no Recife, Olinda e na Zona da Mata Norte, oficina de dança, masterclass, rodas de conversa e um momento especial com sua companhia, a Cie Trilogie Lénablou, que apresentará um espetáculo inédito ao público pernambucano, “Le Sacre du Sucre”(“A Sagração do Açúcar”, em livre tradução).
Programação
Até 27 de setembro, a dançarina estará em intercâmbio direto com artistas, grupos e instituições locais, promovendo encontros e trocas com a cena da dança pernambucana, incluindo nomes da tradição e da contemporaneidade. Durante a residência, nos dias 20 e 21/9, Lénablou e Maria Paula Costa Rêgo (Grupo Grial de Dança/PE) conduzirão uma edição especial do programa “Imersão”, que compõe a grade de Educação e Pesquisa da Oficina, oferecendo vivência-ateliê, no Paço do Frevo, voltada a estudantes e profissionais de dança e linguagens correlatas do Recife. Ainda no domingo (21), a artista participa do projeto “Desvendando Lénablou”, que integra o ciclo “Desvendando Mestres e Mestras”, do Paço do Frevo, parceiro local da Oficina. Na conversa com o público, com tradução consecutiva francês-português, ela compartilha sua história com a dança, sobretudo as danças tradicionais caribenhas, como modo de vida e defesa do próprio território. A proposta estabelece pontes com os saberes e modos de fazer e pensar a arte de mestres e mestras da cultura popular nordestina, alinhando a trajetória pessoal de Léna a conexões locais, numa ação de caráter formativo.
Uma semana depois, no sábado (27), os resultados da residência serão compartilhados com o público em uma apresentação especial no Cineteatro Deborah Brennand, dentro da Oficina. A programação retorna em outubro, com a segunda etapa do projeto, que terá a presença da Cie Trilogie Lénablou, companhia criada e dirigida por Léna. O grupo de Guadalupe conduzirá uma masterclass de Techniʼka no dia 16/10, na Oficina. Já no dia 18, o grupo apresenta o espetáculo inédito “Le Sacre du Sucre”, como parte da programação do 28º Festival Internacional de Dança do Recife, através de uma parceria local com a Prefeitura do Recife, que acolhe o encerramento do projeto com esse trabalho sobre a inventividade dos corpos em meio à lógica da plantation.
“Mais do que uma residência artística ou um projeto de formação e difusão, este é um momento de troca entre imaginários atlânticos e latino-americanos, entre histórias de diásporas africanas e passados coloniais que se conectam mesmo a distância. Um deslocamento que atravessa oceanos, memórias e ritmos ancestrais para produzir novos sentidos a partir de uma relação entre o Caribe francês e o Nordeste brasileiro”, pontua Olívia Mindêlo, gerente Artística da Oficina Francisco Brennand e coordenadora geral do projeto.
A gestora endossa a abertura de uma nova rota, contrária ao projeto colonial ocidental, mas que, por ironia do destino, liga pontos totalmente afinados. “Como diz Grada Kilomba, existe uma nação, um território sem fronteiras nas Américas, no mundo, que está unido pelo fio mágico de corpos e saberes que se fizeram e refizeram a partir de uma resistência cultural e uma inteligência comuns, mas que precisam se conhecer melhor para se fortalecerem. Esses corpos vieram dʼÀfrica e se juntaram aos povos originários e outras populações de diferentes matrizes. Para isso que pensamos esse projeto, tendo o grande nome de Lénablou como motor”, reforça Mindêlo.
Techniʼka, Gwoka e Bigidi
Com 35 anos de carreira, Lénabou é diretora do Centro Coreográfico de Pesquisa Caribenha (La Fabrik) e da Cie Trilogie Lénablou, sendo a criadora da Techni’ka, método de ensino e criação baseado nas tradições do Gwoka, expressão cultural típica do seu território e também Patrimônio Cultural da Humanidade (como o frevo). Com trabalho e pesquisa profundamente enraizados nas tradições e nas reinvenções da cultura de Guadalupe (FR), a artista propõe uma abordagem contemporânea da dança, a partir das matrizes afro-caribenhas, para propor um corpo único, atravessado por ritmos, ancestralidades e trocas.
No centro dessa proposta está o Gwoka, forma musical e dançante tradicional da ilha, onde o improviso dá o tom, numa resposta ao tambor e à coletividade. É desse fio que emerge o conceito de Bigidi, termo em criolo que expressa o desequilíbrio em que a dança é construída sobre uma oscilação permanente, um corpo que balança, mas não cai. A máxima local “Bigidi mè pa tombé/ Cambaleia, mas nunca falha” exorbita a metáfora, representando uma filosofia de existência que atravessa o trabalho de Léna e transforma o desequilíbrio em vigor criativo, linguagem e resistência.
Ao incorporar esses elementos, Lénablou afirma uma estética que desloca noções de centro, estabilidade e controle, propondo uma dança viva, instável e profundamente conectada às memórias do corpo negro no Atlântico. “Esse mesmo corpo em desequilíbrio, na dança, reflete o estado de caos e esquiva que atravessa as experiências como sujeitos do e no mundo, desafiando as lógicas lineares do poder colonial ocidental. O trabalho de Lénablou se baseia na percepção de que a colonialidade provocou nos corpos afrodiaspóricos, em especial os caribenhos, uma forma característica de movimentação, que se fez, consciente ou não, no desequilíbrio”, anota Jamille Barros, gerente de Educação e Pesquisa da Oficina Francisco Brennand e também coordenadora do projeto.
Para ela, a investigação da artista guadalupense mobiliza uma importante perspectiva, que colabora como prática decolonial sobre o Sul Global e valoriza as tradições afro-caribenhas. “Lénablou é também referência no exercício de uma práxis que rompe essa lógica, quando, utilizando-se de dispositivos de poder, a exemplo da escrita, inscreve a si mesma, seu povo e território no mundo, a partir da compreensão da expressão do corpo como transmissão de saber, memória e tradição, elementos que fundamentam a sistematização da Techniʼka”, finaliza Barros.
Lénablou no Brasil
Depois de apresentar a performance “O fluxo da vida” na abertura na 36ª Bienal de São Paulo, a passagem de Lénablou pelo País inclui agenda, até novembro, na Bienal Sesc de Dança de Campinas (SP); na Bienal Internacional de Dança do Ceará, em Fortaleza; no Junta – Festival Internacional de Dança, em Teresina (PI); e no Festival de Dança de Itacaré, na Bahia. Essa viagem coreográfica conecta importantes palcos de arte e dança do Brasil, ressaltando a relevância de sua obra no panorama cultural contemporâneo.
“Atender ao convite da Oficina Francisco Brennand como parte da Temporada França-Brasil 2025 é uma grande oportunidade para mim, como artista e pesquisadora. Além de apresentar meu trabalho para um público brasileiro, a Oficina me permite ir muito além desse objetivo principal, graças à residência de pesquisa. Sou uma artista coreográfica com formação atípica e filosofia singular, que busca lançar luzes sobre a estética caribenha. É natural que pesquisa e criação sejam sinérgicas em minha abordagem artística”, observa Lénablou.
“Minha técnica de base é a dança tradicional de Guadalupe, o Gwoka, que me vincula à história colonial e escravagista e me distancia do grande círculo da chamada dança acadêmica e contemporânea. Agora, a dança Gwoka, ou mais amplamente a dança caribenha, me ditou uma narrativa diferente daquela atribuída a ela: patrimônio, exótica, tradicional, folclórica, étnica… Quando observei um dançarino de Gwoka, vi uma dança acidental, na qual tropeça aqui e ali de forma imprevisível, mas nunca cai. Minha intuição me levou a acreditar que essa aparente desordem revela contemporaneidade, estética, técnica corporal e uma maneira de estar no mundo. Essa corporalidade caótica, que chamei de Bigidi, levou-me à teoria da harmonia da desordem”, acrescenta a artista.
O território Oficina
Explorando o eixo território, um dos três pilares que orientam a atuação da Oficina Francisco Brennand desde 2021, a residência de Lénablou reforça o compromisso central do museu-ateliê: compreender o lugar não apenas como geografia, mas como um campo de relações entre memórias, saberes, práticas criativas e modos de vida. Assim como Guadalupe, onde a artista desenvolve sua pesquisa em dança afro-caribenha, a Oficina se situa em um território marcado por camadas históricas profundas, mas em contínua reinvenção de sentidos por meio da arte.
O museu-ateliê reconhece e valoriza essas cicatrizes e possibilidades. Ao receber essa residência, a Oficina materializa o desejo de Francisco Brennand de transformar o acervo em um terreno vivo de diálogo, abrindo portas para artistas em trânsito e fortalecendo pontes entre memória, patrimônio, criação e arte contemporânea. Desde 2023, essa abertura vem se consolidando com a presença de artistas de diferentes origens, e a chegada de Lénablou representa mais um passo estratégico dessa trajetória, conectando Caribe e Pernambuco em um território compartilhado de imaginação, resistência e transformação artística.
“Abrir a Oficina Francisco Brennand para outras possibilidades de manifestações artísticas é também abrir frestas na própria história que o espaço carrega. A residência de Lénablou oferece uma oportunidade rara de repensarmos nossos conhecimentos coletivos, deslocando o olhar para reconhecer o corpo, e suas expressões, como obra de arte, território e memória. É nesse movimento internacional e nacional que o espaço se reinventa como lugar de encontro, escuta e transformação. Um espaço vivo, em constante diálogo com o mundo”, pontua o presidente da Oficina, Marcos Baptista.
Sobre a Oficina Francisco Brennand
Transformada em um instituto cultural sem fins lucrativos em 2019, a Oficina Francisco Brennand preserva o legado do artista Francisco Brennand, promovendo práticas artísticas, educativas e culturais contemporâneas. Localizada na Mata da Várzea, em Recife, a Oficina abriga um vasto conjunto de obras do artista, com espaços expositivos internos e externos, conjuntos escultóricos monumentais, jardins projetados por Roberto Burle Marx e uma reserva técnica. Fundada em 1971, a Oficina inclui, ainda, ateliês, edificações fabris, uma capela projetada por Paulo Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli, além de um café-restaurante e uma unidade de apoio no Bairro do Recife, a Casa Zero. A instituição conta com o programa de fidelização Amigos da Oficina Francisco Brennand, pelo qual o público pode contribuir diretamente para a preservação do museu, a conservação de seu acervo e a execução de projetos educativos e culturais com contrapartidas e benefícios aos participantes.
Sobre “Le Sacre du Sucre”
Novo espetáculo da Cie Trilogie Lénablou, de Guadalupe (FR), com 50 min. de duração. A partir de uma linguagem artística original desenvolvida por Lénablou, que tem 35 anos de carreira, “Le Sacre du Sucre” marca o advento de um estilo de vida que se enraizou no Caribe. A cana-de-açúcar deu origem a homens e mulheres, a uma história, a uma memória e a uma cultura, e o caule dessa planta ressoa no imaginário das pessoas com palavras que nos recordam o sofrimento e nos convidam a confrontar as nossas diferenças.
PROGRAMAÇÃO | LÉNABLOU NO RECIFE | TEMPORADA FRANÇA-BRASIL
20 e 21/9 das 10h às 13h – Imersão “Balança, mas não cai: conexão Caribe-Pernambuco”, com Lénablou e Maria Paula Costa Rêgo – Oficina para estudantes e profissionais da dança, com inscrições gratuitas disponíveis no perfil @oficinafranciscobrennand no Instagram;
21/9, às 16h – Conversa “Desvendando Lénablou”, parte do ciclo “Desvendando Mestres e Mestras” – Aberta ao público, com inscrições gratuitas disponíveis no perfil @pacodofrevo no Instagram;
27/9, das 14h às 16h – Conferência com Lénablou “Entre os mares eu dancei – Guadalupe (FR) – Pernambuco (BR)”, no Cineteatro Deborah Brennand, Oficina Francisco Brennand – Inscrições @oficinafranciscobrennand no Instagram;
16/10, das 14h às 16h30 – Masterclass com a Cie Trilogie Lénablou na Oficina Francisco Brennand – Oficina para o público em geral, inscrições gratuitas em outubro.
18/10 – Espetáculo “Le Sacre du Sucre”, pelo 28º Festival Internacional de Dança do Recife, em parceria com a Prefeitura do Recife.